‘Não é qualquer um que entra em nossa casa’, diz Bolsonaro sobre imigrantes

Foto: Evaristo Sa/AFP (Foto: Evaristo Sa/AFP)

Foto: Evaristo Sa/AFP

Após o Brasil se retirar do Pacto Global para a Migração, da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro adotou o discurso de soberania nacional para defender a decisão. Em uma imagem publicada no Twitter, Bolsonaro declarou que o País é soberano para aceitar ou não a entrada de migrantes e que «não é qualquer um que entra em nossa casa».

«O Brasil é soberano para decidir se aceita ou não migrantes. Quem porventura vier para cá deverá estar sujeito às nossas leis regras e costumes, bem como deverá cantar nosso hino e respeitar nossa cultura», diz a mensagem publicada pelo presidente. «Não é qualquer um que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto adotado por terceiros.»

O pacto foi assinado pelo ex-presidente Michel Temer em dezembro e aprovado por mais de 150 países. Negociado desde 2017, o documento era uma resposta internacional à crise que atinge diversos países por conta de um fluxo de migrantes e refugiados. O governo brasileiro informou nesta terça-feira (8), oficialmente à ONU que o País está se retirando do pacto.

Fonte: Diário de Pernambuco

‘Migração não é caso de polícia’: Grupos pedem reformulação de lei brasileira sobre estrangeiros

A discussão sobre migração foi colocada em segundo plano, diz especialista.

Em 2007, Issaka Maïnassara Bano deixou o Níger, na África Ocidental, e se mudou para o Brasil para estudar. Em 2015, se formou em Relações Internacionais no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e atualmente faz especialização em Sociologia, além de se preparar para um processo seletivo de mestrado na mesma área.

«Escolhi continuar no Brasil porque acho que tem oportunidade de crescimento, bem mais do que no Níger», conta.

No entanto, sua permanência é dificultada por uma legislação antiga – e sob contestação de organizações de direitos humanos -, que inviabiliza sua plena regularização no país.

Há nove anos no Brasil, Issaka tem apenas um visto de estudante – ele não consegue alterá-lo para o de permanência. Segundo a lei, ter um filho brasileiro ou se casar com uma pessoa de nacionalidade brasileira são algumas das opções que permitem ao imigrante fazer isso.

Por não poder trabalhar formalmente, tem se sustentado com bolas de estudos, como a do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP, onde é pesquisador bolsista, dando aulas de francês e traduzindo documentos. Com isso, acaba tendo de recorrer à ajuda financeira da família no Níger para pagar as contas.

Além de impedi-lo de trabalhar com carteira assinada, o visto de estudante impõe várias outras restrições, como não poder passar mais de seis meses fora do Brasil.

Issaka sofre para permanecer no Brasil por causa de legislação antiga

«Tenho vários amigos que vieram de países pobres como o meu, falam quatro a cinco idiomas, estão no Brasil há mais de 12 anos, mas vivem renovando visto de estudante todos os anos», conta Issaka.

«Um deles fez duas graduações, mestrado em economia pela USP e está no terceiro ano do doutorado, também em economia pela USP. Como o trâmite é muito burocrático e demorado, ele nunca conseguiu trocar o visto para o de permanência até hoje.»

Política nacional

Para Letícia Carvalho, assessora da organização Missão Paz São Paulo, os estrangeiros representam, segundo a perspectiva da lei em vigor, um «perigo» ao Brasil.

«O Estatuto do Estrangeiro, de 1980, uma lei elaborada sob a ótica da Lei de Segurança Nacional do governo militar, parte do pressuposto de que as migrações representam um risco à segurança nacional e aos trabalhadores brasileiros, encarando o imigrante como ameaça à sociedade», afirma ela.

Carvalho faz parte de um grupo de entidades que lançaram a campanha «#Migrar é direito», pedindo o fim do estatuto.

«Um país construído por pessoas de todas as partes do mundo não pode tratar a migração como caso de polícia», defende a iniciativa, lançada no mês passado.

Com ela, entidades sociais e movimentos ligados à migração pressionam o governo pela inclusão na pauta da Câmara dos Deputados da nova Lei de Migração, o projeto 2516/15 do Senado.

O texto já foi aprovado em uma comissão especial da Câmara. Mas, mesmo em regime de prioridade para votação no plenário desde julho, mas segue sem previsão de votação.

Entidades consideram lei brasileira «discriminatória» com estrangeiros

A urgência em se aprovar a Nova Lei de Migração se dá ao aumento das ondas migratórias no país, afirmam especialistas.

Cerca de 1,18 milhão de imigrantes regulares vivem no Brasil de maneira permanente, segundo estatísticas da PF atualizadas em 2015.

De acordo com dados da Missão Paz São Paulo, que oferece ajuda a estrangeiros na capital paulista, foram atendidos, somente em 2015, 6.929 estrangeiros de 64 países do mundo todo, sendo Haiti (3.895), Bolívia (1.011) e Peru (435) os três principais países de origem – em 2013, foram 3.231 atendidos.

Dados da Polícia Federal apontam que o número de imigrantes registrados no país aumentou em 160% desde 2006. Apenas em 2015, 117.745 estrangeiros deram entrada no Brasil – 2014 foi o ano de maior entrada de imigrantes neste período, 119.431.

Pouca liberdade

Carvalho explica que o atual Estatuto do Estrangeiro contém uma série de restrições às liberdades individuais ao migrante, como não poder votar, exercer atividade política, integrar sindicatos e participar de protestos e manifestações políticas.

Além disso, diz, o Estatuto inviabiliza a regularização do indivíduo que entrou de forma irregular no país e de pessoas cujo status se tornou irregular depois da expiração do visto.

«Os processos administrativos precisam ser mais acessíveis, incluindo os custos da regularização migratória e a validação de diplomas internacionais», opina Lúcia Sestokas, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, que integra a campanha #Migrar é direito.

Ela afirma que o movimento de defesa dos direitos das pessoas migrantes no Brasil tem reivindicações históricas que até hoje não foram atendidas. Uma delas diz respeito ao controle migratório, hoje a cargo da Polícia Federal – algo que a ativista afirma ultrapassar as funções constitucionais da organização.

A reivindicação das entidades é que o controle migratório seja realizado não por policiais, mas por funcionários civis capacitados para lidar com os migrantes de forma não discriminatória e individualizada.

Outra demanda é que o diretor do Departamento de Migrações seja uma pessoa com reconhecida trajetória na defesa dos direitos da população migrante.

O texto da nova Lei de Migração prevê, além de garantias humanitárias, ações como urgência na emissão de documentos de identificação, matrícula imediata em escolas para o aprendizado do português e acompanhamento com psicólogos.

«Um avanço a ser ressaltado é o reconhecimento dos migrantes enquanto sujeitos de direitos, o repúdio a qualquer forma de discriminação, xenofobia e a não criminalização da migração», explica Alex Andre Vargem, da Conectas Direitos Humanos, que também integra a campanha #Migrar é direito.

«Hoje, a migração é vista mais do que como uma questão humanitária, é vista como um direito dentro do Direito Internacional dos Direitos Humanos», argumenta Camila Barretto Maia, do Centro de Estudios Legales y Sociales.

Migrante x estrangeiro

Márcia Maria de Oliveira, pós-Doutora em Sociedade e Fronteiras pela Universidade Federal de Roraima, argumenta que, além de estar defasado, o Estatuto do Estrangeiro apresenta problemas que remontam sua concepção.

«O estatuto não permite à legislação brasileira propôr políticas migratórias porque o estatuto simplesmente ignora a existência do migrante e centra-se na figura do estrangeiro. Nega ao migrante o acolhimento por parte da sociedade que o recebe como o «outro»», afirma.

Outro problema migratório, acentuado pela concepção do Estatuto do Estrangeiro, para Oliveira, é a existência de um ideário do «migrante ideal», em que este seria proveniente de países ricos, branco, homem e solteiro.

«O estatuto não contempla o ingresso da família migrante, nem do migrante pobre, negro, índio, ou dos países vizinhos ou de regiões mais pobres do planeta. Quando o permite não poupa as restrições.»

Para Erick Gramstrup, juiz federal e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC, o texto contém normas que envelheceram e apresenta uma posição muito defensiva diante do imigrante.

«Algumas regras ficaram claramente incompatíveis com a Constituição de 1988 e algumas nem foram recebidas por ela. Por exemplo, o estatuto prevê prisão por ordem do Ministro da Justiça, uma autoridade do Executivo, o que não é possível hoje em dia. Prisão, só por ordem da autoridade judiciária», explica.

Ressalvas

Mas também há ressalvas quando o assunto é o projeto da nova Lei de Migração.

«A redação deixa escapar que é mais favorável ao ingresso dos migrantes ‘pronto’ para o mercado de trabalho, investimento, intercâmbio de bens e serviços e investimentos internacionais, em detrimento ao que ainda está em processo de formação para o mundo do trabalho, como por exemplo as crianças», afirma Oliveira, que cita ainda os portadores de deficiências físicas e mentais.

Gramstrup também faz críticas. «A reforma é desejável, mas não qualquer reforma», diz.

É preciso que o projeto avalia, atinja equilíbrio entre os interesses do migrante e os interesses da sociedade brasileira.

«O substitutivo aprovado pela Comissão Especial da Câmara merece aperfeiçoamento. Particularmente na questão sobre a expulsão do estrangeiro que aqui comete crimes dolosos. Sem esse substantivo, a sociedade praticamente ficará sem instrumento de autodefesa.»

Fonte: BBC Brasil

‘Haitiano vive com medo aqui’, relata imigrante em audiência pública na Capital

Ministério Público do Trabalho promoveu uma audiência pública para tratar sobre a situação dos imigrantes |Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Não importa de que país eles vêm, o que importa é que são pessoas e precisam ser respeitadas.” A declaração em defesa dos imigrantes que buscam uma oportunidade em Porto Alegre foi dada pelo presidente do Sindicato da Construção Civil da Capital, Gelson Santana, na audiência pública promovida na segunda-feira (24) pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), com o fim de discutir a migração e o trabalho escravo.

Na audiência conduzida pelo procurador do MPT Luiz Alessandro Machado, o representante do sindicato enumerou as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes. “Muitos estavam trabalhando sem carteira assinada”, relatou Santana. “O problema não é só na construção civil”, esclareceu ele. Muitos imigrantes, a maioria haitianos, trabalhavam na Capital, segundo o dirigente sindical, mas estavam alojados em outras cidades. Ele disse que o sindicato tem procurado ajudar os imigrantes e, entre outras iniciativas tomadas, fez um convênio para que eles pudessem ter aulas de português – já que o idioma é uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos estrangeiros – com o objetivo de entenderem as cláusulas do contrato. Além disso, a entidade sindical contratou dois haitianos para auxiliar os demais imigrantes com a língua.

A sociedade, conforme Santana, não conhece as dificuldades vividas pelos imigrantes no Estado. “Infelizmente, não é retratada a realidade”, observou ele, destacando que, normalmente, a comunidade se mobiliza em ajudar diante de reportagens de repercussão sobre a situação dos imigrantes, mas logo depois o assunto é esquecido. O presidente do Sindicato da Construção Civil reclamou, ainda, da falta de apoio do poder público. “Parece que há uma dificuldade para proteger essas pessoas, para cuidar dessas pessoas”, afirmou.

Presidente do Sindicato da Construção Civil, Gelson Santana afirmou que os imigrantes encontram dificuldades e que alguns não têm carteira assinada |Foto: Guilherme Santos/Sul21

Representante do Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados (Gaire) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a advogada Laura Sartoretto relatou que o órgão recebe muitas demandas trabalhistas, principalmente de discriminação. “O grosso do nosso trabalho se dá em questões de preconceito e racismo”, revelou ela. Durante a manifestação, a advogada relatou que um imigrante haitiano que trabalhava na construção civil, depois de sofrer “agressões verbais”, teria sido jogado do segundo andar de um prédio por colegas de trabalho. Após um mês no Hospital Pronto Socorro, ele teria fugido para o Chile devido às ameaças. Pela situação de vulnerabilidade, observou Laura, muitos imigrantes temem fazer denúncias e perder o emprego. A advogada também ressaltou as dificuldades quanto à revalidação do diploma. “A questão de trabalho no Brasil não se adequa à formação profissional em seu país”, explicou a integrante do Grupo de Assessoria Jurídica da UFRGS, defendendo uma Regulação Migratória no Brasil “mais civilizada.”

Preconceito e xenofobia

Formado em Engenharia da Computação pela UFRGS, o haitiano Alix Georges foi o único imigrante a participar da audiência pública. Logo no início da manifestação, ele explicou o motivo dos compatriotas rumarem para o Brasil: “O único intuito é trabalhar, ganhar dinheiro e ajudar a família.” Ele, que hoje é professor de idiomas e trabalha na Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura, contou que os imigrantes chegam com a expectativa de ganhar um bom salário, mas que a realidade não passa de R$ 1 mil por mês. “É muito pouco dinheiro, tem de mandar para a família. Outro problema é o racismo e a xenofobia. Eu tenho de enfrentar o racismo e a xenofobia todos os dias”, afirmou Alix, frisando que esse tipo de discriminação é um problema cultural da sociedade. “Direitos Humanos são direitos universais e iguais para todos. Infelizmente, o haitiano vive com medo aqui”, desabafou o professor, ressaltando que muitos deles sofrem “agressões psicológicas.” Ele acrescentou que a comunicação é uma das barreiras enfrentadas pelos haitianos, além de muitos se encontrarem sem emprego, devido à crise no Brasil.

«Eu enfrento preconceito e xenofobia todos os dias», diz o haitiano Alix Georges| Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ao final, o procurador Luiz Alessandro Machado lamentou não terem comparecido mais imigrantes, mas que a audiência foi o ponto de partida para tratar dos problemas enfrentados por eles no Estado. “Esse foi um encontro inicial, pena que não veio mais imigrantes”, afirmou o representante do MPT, enfatizando que o Sindicato da Construção Civil deu uma panorama da situação desses trabalhadores. Machado disse que as denúncias que chegarem ao MPT serão averiguadas. “Se chegar um caso grave, o Ministério Público do Trabalho vai dar uma resposta”, finalizou.

Procurador Luiz Alessandro Machado disse que MPT investigará denúncias que chagarem e dará uma resposta ||Foto: Guilherme Santos/Sul21

Também participaram da audiência pública representantes da Defensoria Pública estadual e do Ministério Público Federal.

Fonte: Sul21

Burocracia dificulta atendimento a crianças refugiadas desacompanhadas

O Brasil teve um aumento de mais de 2.000% no número de solicitações de refúgio em quatro anos, entre adultos e crianças, de acordo com o Comitê Nacional para Refugiados (Conare). Dos pedidos que envolvem refugiados na infância, 9,8% eram para crianças separadas ou desacompanhadas de um responsável legal.

O número é proporcionalmente pequeno, mas não para de crescer. Não bastasse o trauma da fuga forçada e a separação dos parentes, essas crianças ainda enfrentam dificuldades burocráticas da solicitação de refúgio, o que impede o acesso a uma série de direitos.

A situação é tão preocupante que foi tema de debate promovido hoje (22) pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em sua sede, no centro do Rio, em parceria com Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

Burocracia

O assistente de proteção do Acnur Diego Nardi chamou de urgente a situação dessas crianças que, por não terem um representante legal, precisam esperar de dois a oito meses para poder pedir asilo no Brasil. “As crianças que não têm ninguém são encaminhadas para um abrigo e o responsável pelo abrigo se torna o representante legal e dá o encaminhamento ao processo. No caso das crianças que chegam com um adulto, é necessária uma ação de guarda para ele receber a guarda dessa criança e então dar o procedimento de refúgio”, explicou.

Durante o processo, a falta de documento dificulta a matrícula na escola, o acesso a serviços de saúde e aos benefícios das políticas sociais, entre outros direitos, segundo Nardi. “A opção de criança desacompanhada ou separada não está nem no formulário de refúgio.”

Atualmente, a Defensoria Pública do Rio de janeiro cuida de oito casos envolvendo 12 crianças nessa condição. De acordo com a defensora pública Elisa Costa Cruz, subcoordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica) da defensoria, a maioria das crianças chega ao Brasil com algum familiar, porém sem a prova do parentesco.

“A Polícia Federal, nos últimos anos, tem recusado esse pedido [de refúgio] por essas crianças, que exige um documento comprovando o parentesco ou a guarda deferida por um juiz. Só que esse processo judicial demora. Enquanto isso, a criança não tem documento, ela é invisível para o Estado brasileiro”, criticou o assistente do Acnur.

“Essa criança precisa ter o direito de pedir o refúgio e resolver sua situação política com o Brasil e ao mesmo tempo do direito de proteção e bem-estar. Que o acesso ao refúgio não seja condicionado a uma regularização familiar. E só quem pode solucionar isso é a Polícia Federal”, acrescentou.

A policial federal Patrícia Dias Bevilacqua, que trabalha há cinco meses no setor de concessão de protocolo de solicitação de refúgio no Rio de Janeiro, disse que a orientação é assegurar o parentesco da criança para conceder o direito de permanência no país.

“É uma responsabilidade muito grande legitimar um protocolo sem ter certeza se aquele homem e aquela mulher são realmente os pais daquelas crianças, são realmente refugiados. Tenho regras e preciso obedecer alguns critérios para garantir o direito dessas crianças”, argumentou. “Precisa haver uma comunicação como a que está havendo aqui entre todos os órgãos, algum órgão que ampare essas pessoas que chegam indocumentadas”, sugeriu.

Atualmente, a PF orienta as pessoas a procurarem a Defensoria Pública e o consulado para solicitar documentos. Em seguida, um dossiê da Polícia Federal é enviado ao Conare que defere ou indefere o refúgio.

Agência para imigrantes e refugiados

Para o advogado da Cáritas no Rio de Janeiro, Fabrício Toledo, a situação de imigração e refúgio deveria ser de responsabilidade de uma agência específica. “Não deveria ser responsabilidade da Polícia Federal cuidar de assuntos que não são de segurança. A questão dos refugiados é de direitos humanos e proteção.”

Toledo ressaltou que o número de refugiados no Brasil ainda é pequeno, mas tende a crescer e o país precisa se preparar para essa nova realidade. “Esse é um tema novo para o Brasil, mesmo com o aumento de 2.000% do número de pessoas chegando, é um número irrelevante se comparado com alguns países. Mas é um desafio que precisamos enfrentar. Precisamos criar uma rede, uma estrutura que funciona automaticamente, que dê proteção efetiva assim que as crianças chegam”, disse.

Entre os desafios para receber e acolher crianças refugiadas separadas da família, os especialistas abordaram a necessidade de capacitação de profissionais envolvidos nos processos de solicitação de refúgio e de criação de um posto humanizado nos aeroportos internacionais com uma equipe multidisciplinar, com profissionais como assistentes sociais e psicólogos para garantir a proteção dessas crianças. “Além do despreparo para atender a esse público, tem a questão do preconceito. O Brasil tem um déficit democrático em relação a pessoas mais vulneráveis. Isso fica mais evidente em relação aos refugiados”, disse o advogado da Cáritas.

Crianças congolesas são maioria

A maior parte das crianças refugiadas desacompanhas de um representante legal vem do Congo, país africano que vive um conflito armado que já matou centenas de milhares de pessoas e causou o êxodo forçado de outra parte da população.

Há oito anos no Brasil, Charly Kongo é refugiado e hoje trabalha na Cáritas no atendimento a conterrâneos congoleses. Para ele, a falta de documentos faz com que as crianças sejam punidas duplamente por serem refugiadas. “Os adultos fizeram uma escolha de fugir e vir para cá. As crianças nem essa opção tiveram. Por isso, precisamos respeitá-las muito. Elas têm que aprender outro idioma, viver em um país diferente, sofrem muito preconceito nas escolas, acusados de traficantes ou prostitutas”, disse Kongo, que se tornou uma espécie de líder na comunidade congolesa no Rio.

O refugiado diz que conheceu o racismo no Brasil. “Lá [Congo] quase todos somos negros. Então, aqui sofremos o preconceito que os negros brasileiros já sofrem e o preconceito por sermos refugiados. As pessoas confundem com foragido ou fugitivo. Pensam que fizemos algo errado em nosso país e tivemos que fugir para cá”, lamentou.

Fonte: EBC Agência Brasil

Aumenta entrada de venezuelanos no Brasil por Roraima

A crise político-econômica na Venezuela cruzou as fronteiras e chegou ao Brasil. Diariamente, dezenas de venezuelanos ultrapassam o limite entre os dois países, em busca de uma vida melhor no lado brasileiro. E Roraima é a porta de entrada dessas pessoas.

Na capital Boa Vista, eles podem ser encontrados às portas da Polícia Federal, em busca de documentos que os habilitem a permanecer no país.

Angeli Idalgo veio em busca de emprego. Ela reforça a situação difícil no país natal. «Do mesmo jeito que você olha no jornal, essas coisas, é assim mesmo. O jovem está saindo a cada dia na rua pra fazer protesto, porque não tem comida, inseguridade, essas coisas assim. Eu saí da venezuela com o propósito de chegar aqui e trabalhar. O único jeito é ficar aqui tranquilamente e pedir refúgio, pra ter a carteira de trabalho, essas coisas, e não ter problema nenhum», diz Angeli.

Dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), vinculado ao Ministério da Justiça, mostram que de janeiro a maio deste ano já foram 338 pedidos de refúgio de venezuelanos. Mas esta é apenas uma das formas de o estrangeiro entrar no Brasil, como explica o superintendente em exercício da Polícia Federal em Roraima, Alan Robson Ramos. «Há múltiplas condições do estrangeiro entrar no Brasil. O mais comum é o turista. O refúgio é mais uma possibilidade. Tem o exilado, tem o trabalhador, tem o esportista agora nas olimpíadas. E o irregular entra sem se apresentar à polícia, em Boa Vista você vê nos sinais pedindo esmola, e a polícia federal faz seu trabalho também que é a deportação desses estrangeiros que são flagrados irregulares no Brasil», explica Alan.

O professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Antônio Jorge Ramalho, revela que tem observado a chegada desses estrangeiros pelos jornais. Mas ele explica que a situação da maioria dos Venezuelanos é de migração econômica e não de refúgio. «Ali você não tem pessoas buscando refúgio. Você tem pessoas que estão buscando uma vida melhor. São pessoas que deixam seu país em busca de um emprego, de uma fonte de renda mais segura, inclusive pra fazer remessa para seus familiares. A Venezuela passa por uma crise muitíssimo mais profunda e grave do que a nossa crise econômica e naturalmente as pessoas vão buscar oportunidades nos países vizinhos», conta Antônio.

De acordo com Antônio Jorge, o países da América Latina têm atuando com diálogo para que os ânimos entre governo e oposição na Venezuela melhorem.

No último dia 12 de junho, os chanceleres de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai enviaram comunicado pedindo que venezuelanos possam resolver as diferenças por meio do diálogo pacífico e com métodos democráticos.

Fonte: Portal EBC

Migração não pode ser pensada como questão de segurança nacional, diz pesquisadora

Imigrantes no Acre durante auge da chegada de haitianos, em 2013 / Angela Peres/ Secom Acre (10/04/2013)

A crise migratória é tema diário do noticiário mundial. Milhares de famílias da África e do Oriente Médio fogem de guerras e perseguições rumo a diversas regiões do mundo, em busca de vidas melhores. No entanto, grande parte dos destinos não conta com políticas públicas para receber e integrar essas pessoas. O Brasil, que também recebe um grande fluxo de pessoas da América Latina, é um desses casos: a lei que rege as migrações internacionais no país até hoje se chama Estatuto do Estrangeiro, baseado na Lei de Segurança Nacional da época da ditadura.

«Do ponto de vista sociológico, o estrangeiro é o outro. Então, estamos dizendo que ele nunca vai ser igual a nós. E as políticas migratórias não podem ser pensadas como questão da segurança nacional”, analisa a demógrafa Rosana Baeninger, professora do Núcleo de Estudos da População, da Universidade Estadual de Campinas (Nepo/Unicamp), e coordenadora do Observatório das Migrações de São Paulo.

Em entrevista ao Brasil de Fato, ela fala da falta de políticas migratórias, que tornam o imigrante dependente de uma rede formada por outros imigrantes já estabelecidos, e comenta os ganhos e limites do projeto de Lei da Migração (PL 2516/2015, atualmente sendo analisado por uma comissão especial na Câmara). “Precisamos quebrar as fronteiras nacionais e pensar como a lei vai dialogar com essa intensa mobilidade de população hoje no mundo, em âmbito internacional. Ainda estamos olhando muito para o nosso território”, critica.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato – Como o Brasil está inserido na crise migratória hoje? Quais são os principais fluxos migratórios para o país e dos brasileiros para fora? O que traz essas pessoas pra cá?

Rosana Baeninger – É preciso entender que a mobilidade do capital leva à mobilidade da força de trabalho. Os principais fluxos para o Brasil, até muito recentemente, eram da América Latina: bolivianos, paraguaios, argentinos e uruguaios. E isso se reconfigura de 2010 pra cá, quando as imigrações haitianas dão um novo contorno, além de pessoas de mais de 120 nacionalidades que estão pedindo refúgio no Brasil.

Quais são?

Desde 2013, o Brasil já tinha um acordo com a Síria para que eles tirassem os vistos lá, antes de vir para cá. Mesmo assim, em torno de 2 mil pessoas precisaram tirar o visto de refugiadas aqui. As nacionalidades são as mais diversas, porque não são só os países africanos. Essa nova onda de crise humanitária está incorporando novos territórios. Temos Bangladesh, Líbano, Cazaquistão e o Nepal, por exemplo.

Nos países de origem, há uma crise humanitária, social e econômica. Nos países de destino, o entendimento de crise vem com a ideia de fronteiras e das restrições à imigração que elas colocam. Então, para entender a migração no século 21, nós temos que entender que não há somente a emigração sul-norte [entre hemisférios], mas também o deslocamento dos periféricos para a periferia.

Isso acontece também com os brasileiros?

Sim. É bom apontar que a periferia do capital internacional também atrai países periféricos. Se vamos ver as solicitações de refúgio feitas no Brasil hoje, vamos ver que não estamos mais lidando com os fluxos históricos, como EUA e Japão, mas países como Portugal e Espanha. Com esse movimento dos periféricos para periferia, outros países com quem tínhamos pouca articulação passam a compor os destinos dos brasileiros.

É preciso entender que essa mobilidade tem a ver com o panorama internacional. Os destinos dos brasileiros hoje, justamente pelas restrições dos países centrais à entrada de imigrantes, começam a se diversificar. Irlanda e Austrália, por exemplo, são destinos que começam com uma corrente de estudantes, mas ampliam seus fluxos imigratórios.

Mas não é só isso. No caso da Irlanda, por exemplo, a entrada de capital internacional para os frigoríficos do Brasil traz também novos imigrantes irlandeses a cidades cujos moradores nunca tinham se deparado com essa possibilidade de ir para a Irlanda. Então, se cria um imaginário social migratório que tem a ver com essa penetração do capital em localidades que não estão somente em regiões metropolitanas.

Nós ainda vamos ter, no caso do Brasil, um fluxo que vai para os Estados Unidos, para a Itália, para o Japão, para Portugal, mas aos poucos vão se ampliando os destinos.

Quais são os principais desafios que os imigrantes encontram quando chegam ao Brasil?

No caso dos refugiados e solicitantes de refúgio, há um tripé de apoio: o Comitê Nacional de Refugiados (Conare), a ACNUR [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados] e a Igreja Católica, representada principalmente pela Caritas. No caso dos imigrantes que não estão solicitando refúgio, esses imigrantes também têm buscado as pastorais para tentar se inserir na sociedade. Mas isso não é um trabalho contínuo.

Não existe uma política migratória que dê esse reconhecimento ao imigrante. Eles enfrentam uma situação muito penosa de depender de uma rede de imigrantes que, ao mesmo tempo que ajuda, aprisiona. Aprisiona no sentido antropológico de que ele sempre vai dever alguma coisa para quem o recebe. Então, é bastante complicado. Porque essas redes vão tomando cada vez mais o espaço que o Estado não assume. Foi o caso dos haitianos na fronteira: o custo cobrado pela rede migratória para ajudar na travessia era enorme.

Na medida em que o Estado assume a importância de se pensar em políticas migratórias e oferece opções de entrada, é preciso que essas políticas avancem. Porque nós não vamos receber uma grande quantidade de imigrantes como recebemos na virada do século 19 para o 20, mas vamos receber imigrantes de diversificados países, e eles darão uma conotação social bastante importante no contexto nacional.

Hoje quais são as políticas públicas de imigração mais urgentes?

Uma das políticas que teve um impacto muito significativo foi o aumento da concessão de vistos no Haiti, que rompeu com a indústria da imigração na travessia pela fronteira. Para se fazer políticas sociais, é preciso saber de qual fluxo estamos tratando, qual a composição dele e que, não necessariamente, o Brasil é o país de destino final desses imigrantes.

No âmbito dessa mobilidade intensa de capital, esforço e trabalho, o professor Duval Magalhães [da PUC-MG] sempre tem colocado que o Brasil pode passar a ser um país de trânsito migratório. Portanto, as políticas migratórias não podem ser pensadas como questão da segurança nacional, mas como etapa de um projeto migratório que não necessariamente tem a ver com o Brasil. Pode ter a ver com outros espaços do mundo. Então, acho que o aumento do número de vistos já diminuiu a entrada na fronteira e já rompeu com aquela rede que se aproveitava desse fluxo migratório.

Internamente, em relação à recepção dos imigrantes, que outras políticas públicas faltam?

Uma das questões importantes é o reconhecimento do diploma. Alguns deles têm curso superior, mas não têm esse reconhecimento aqui. É preciso pensar uma política para dar possibilidade de os imigrantes, refugiados principalmente, validar seus diplomas. De outro lado, é importante pensar em políticas públicas em escolas para essa população, particularmente para a segunda geração que nasce e transita pelo país.

O que muda do Estatuto do Estrangeiro para o projeto de Lei da Migração que está em tramitação?

Do ponto de vista sociológico, o estrangeiro é o outro. Então, estamos dizendo que ele nunca vai ser igual a nós. O estatuto é de 1980, portanto, da era da ditadura, baseado na Lei de Segurança Nacional e na possibilidade de que somente migrantes altamente qualificados poderiam residir no país.

A Lei da Migração já tem um nome que denota outro instrumento. Estamos assumindo que existe a possibilidade de migração para o país, e isso eu vejo como bastante positivo. Mas ainda há algumas questões que precisam de maiores discussões, particularmente porque [mesmo a nova lei] ainda tem bastante enfoque na segurança nacional – como as categorias que classificam os imigrantes como temporários ou permanentes. Acho que é um debate que ainda precisa avançar. A Lei de Migração é importante, porque já é uma contraproposta do Estatuto do Estrangeiro. Mas, de outro lado, a lei precisa caminhar um pouco mais para decidirmos como vamos receber esses imigrantes.

O projeto de Lei de Migração [como está hoje] denota que o Brasil é o país de destino final desse imigrante. Nós temos que olhar mais a frente e pensar que não necessariamente será assim. Precisamos quebrar as fronteiras nacionais e pensar como a Lei vai dialogar com essa intensa mobilidade de população hoje no mundo, em âmbito internacional.

Nós ainda estamos olhando muito para o nosso território, e a questão das fronteiras é pouco discutida. Precisamos mudar as coisas para que os imigrantes tenham a proteção, a acolhida e o reconhecimento de sua importância no cenário nacional.

Sobre a recepção e a integração dos imigrantes, como a nova lei melhora a situação de hoje?

Na verdade, esqueci de falar da política de trabalho, porque a questão do mercado de trabalho é fundamental. Não existem políticas migratórias para absorvermos essa mão de obra imigrante sem que ela seja usada para abaixar os salários. Essa lei precisa ser mais debatida para que se possa dar condições ideais para o imigrante que quer se inserir no mercado de trabalho.

Na minha opinião, a única maneira de a sociedade receber bem esse imigrante é transpor seu estereótipo. A visão da sociedade brasileira sobre o imigrante é aquela do início do século 20, europeu, branco, que foi a migração considerada ideal pela sociedade brasileira. E não é esse o imigrante que tem chegado hoje. Para que os novos imigrantes, que são negros e descendentes de indígenas, possam se inserir na sociedade, é preciso que haja avanços nas políticas sociais. Para isso, a [formulação] Lei de Migração precisa ter mais diálogo com os próprios imigrantes.

A forma como a Lei de Migração vem sendo encaminhada não resolve esse problema?

Ela avança no sentido de enxergar o fenômeno, mas corre o risco de engessar algumas situações que hoje são muito mais flexíveis. Por exemplo: hoje os vistos de trabalho são dados pelo Conselho Nacional de Imigração, que é do Ministério de Trabalho. Qualquer visto de trabalho passa por lá, assim como o visto humanitário dos refugiados.

Na medida em que a Lei de Migração passa pelo Ministério da Justiça, ela pode engessar muito mais essas situações que o Conselho Nacional de Migração, que tem sido mais próximo de efetuar uma política, como foi no caso dos haitianos, que já ganharam carteira de trabalho. A transferência dessa lei para o Ministério da Justiça, porque nessa proposta o Conselho Nacional de Migração, algumas situações que nós temos conseguido resolver podem ficar engessadas, justamente porque estão com pouco diálogo com as políticas sociais.

Ainda vai levar muito tempo pro PL 2516 ser aprovado, não?

Talvez essa trajetória não seja curta, mas o que nos da esperança é que a municipalidade tem feito diversas ações para que esses imigrantes tenham maior inserção e integração. Por outro lado, não podemos esquecer que os imigrantes também são elementos de transformações e mudanças sociais. No caso de Santa Catarina, as associações de haitianos que se multiplicaram no estado denotam a capacidade de organização que eles têm, e isso é importante, porque essa demanda faz com que se crie políticas. A demanda acaba trazendo políticas sociais locais. Municípios de Santa Catarina têm feito isso, municípios de São Paulo, como Campinas, têm feito ações locais, e eu acho que elas são absolutamente importantes para esse caminhar de transformação da sociedade em seu conjunto com diferentes atores, não só com a Lei de Migração.

Fonte: Brasil de Fato

Os italianos invisíveis de Minas Gerais

Números nunca totalmente confiáveis indicam que Minas Gerais conta com cerca de 1,5 milhão de descendentes de italianos, dispersos pelas regiões Sul e Leste. No entanto, o Estado tem sido ignorado em quase todos os levantamentos oficiais sobre a imigração italiana para o Brasil. Poucos são os historiadores e pesquisadores que se dedicam ao tema e raros os resultados desses estudos. Se nos detivermos então à Zona da Mata, onde cidades inteiras ostentam indícios de presença oriundi, fica evidente o menosprezo a que fomos relegados.

Rara é a literatura (ficcional ou memorialística) a tratar da saga do imigrante no Brasil

Introduzido na Zona da Mata na década de 1830, o café iria adquirir importância fundamental no total das exportações brasileiras. Entre 1870 e 1880, para atender às exigências cada vez maiores de diminuição dos custos da produção, a malha ferroviária alcança a região. A mesma estrada que transportava as sacas para o porto do Rio de Janeiro conduzia de volta levas e mais levas de imigrantes que fugiam da miséria do Vêneto, norte da Itália. Durou pouco, no entanto, a euforia. Já no final da primeira década do século XX, a economia da Zona da Mata estava inteiramente desmantelada – o golpe fatal dado pela quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a tomada do poder central por uma nova elite política, no ano seguinte. Assim, a região mergulhou num processo de letargia, que absorveu a quase totalidade de suas cidades. O empobrecimento empurrou as famílias imigrantes para a agricultura de subsistência, em terras pouco férteis e distantes dos centros consumidores.

Com o parco capital acumulado, os imigrantes conseguiram adquirir pequenos pedaços de terra (que chamavam genericamente de “sítio”), onde cultivavam, utilizando mão de obra familiar, produtos essenciais para o consumo próprio, como arroz, feijão e milho, legumes, verduras e frutas, além da cana-de-açúcar, que complementava a alimentação dos bois para abate e das vacas leiteiras, criados soltos no pasto. No quintal, mantinham as “criações”, frangos para corte e galinhas poedeiras, mas também patos, marrecos, perus e galinhas d’angola. Havia ainda porcos nos chiqueiros e, eventualmente, cabritos e coelhos. Como moeda de troca, além dos excedentes da produção caseira, apenas o fumo, que vendiam em cordas.

Vivendo de forma espartana, isolados em suas propriedades montanhosas, muitas vezes de difícil acesso, vencidas as distâncias a custo por meio de cavalos, charretes ou carros de boi, pouco tempo restava para a convivência com outras famílias. Os inúmeros filhos e filhas, embora compreendessem a língua dos pais, quando iam à cidade, por ocasião da missa de domingo ou de festas religiosas, batizados e casamentos, ou ainda de enterros, tentavam comunicar-se apenas em português para se sentirem pertencentes ao novo país. A primeira geração nascida no Brasil, portanto, já havia cortado os laços que a uniam à pátria distante. Além do idioma, substituiu hábitos alimentares e comportamentos, e nem mesmo os sobrenomes conseguiram manter: na hora de proceder ao registro dos descendentes, os escrivães, sem entender direito o português estropiado, anotavam o que lhes parecia ter um som assemelhado ao ouvido, que o imigrante, analfabeto, não conferia.

A imigração é sempre a encenação de uma tragédia. Ao deixar o torrão-natal —e essa é uma decisão tomada quando já não resta nenhuma esperança—, somos obrigados a abandonar não apenas a língua materna, os costumes, as paisagens, mas, mais que tudo, os ossos dos entes queridos, ou seja, o signo que indica que pertencemos a um lugar, a uma família, que possuímos, enfim, um passado. Quando assentado em outras plagas, o imigrante tem que inventar-se a partir do nada, reinaugurando-se dia a dia, numa terrível luta contra a invisibilidade, numa incessante tentativa de não ser identificado como estrangeiro, forasteiro, estranho. Por isso, rara é a literatura (ficcional ou memorialística) a tratar da saga do imigrante no Brasil (seja de que nacionalidade for), e, quando existente, tende, na maior parte das vezes, a emular uma história edulcorada, como se, passando um verniz sobre as feridas, conseguíssemos estancar a dor causada pelo fato de não termos raízes.

O trajeto entre o desordenado núcleo urbano de Rodeiro, agora um importante polo moveleiro, e a Fazenda do Paiol, onde originalmente se estabeleceram os Ruffato, desdobra-se hoje em desoladora paisagem. Nos pastos ressequidos, cobertos por capim-gordura e retalhados em voçorocas, um pétreo silêncio esmaga as ruínas do que foram casas simples, emboçadas ou de pau-a-pique, dispersas pelo caminho. Se aguçarmos os sentidos, talvez ouçamos os murmúrios que o vento espalha, quase sobrenaturais, para além da poeira amarela e seca que ignora as cercas de arame farpado enferrujado. O incansável jorro de um cano de água que desaba num inútil tanque de cimento verde de lodo… O som preguiçoso de bambus que se esfregam se esfregam se esfregam… O tchibum de um tímido lambari oculto na loca de um córrego… O canto merencório de uma adivinhada juriti… O esvoaçar de uma seriema assustadiça… E, sobrepairando sobre tudo, uma terrível solidão, a solidão dos lugares abandonados, mortos…

O que restou da presença italiana por ali? Quase nada, além de sobrenomes mutilados… Os barulhentos jogos de truco e bocha… Alguns traços da culinária, quem sabe… A caçarola, espécie de pudim de queijo que devorávamos a caminho da roça… A minestra, a polenta à bolonhesa, o macarrão com abobrinha italiana, a sofisticada flor de abóbora à milanesa que minha mãe adornava caprichosa, e a inesquecível piada, algo como um crepe que meu tio Pedro nos ofertava em longínquos cafés da manhã de tempos idos… Que mais? Talvez um excessivo apego à família, uma inflexível ética do trabalho, um arraigado catolicismo, um certo otimismo ingênuo…

Fonte: El País

Os rostos da migraçäo em Säo Paulo

Inspirado no Humans of New York, projeto do norte-americano Greg Fischer reúne histórias dos imigrantes e refugiados que chegam à capital paulista (Por Andréia Martins)

O norte-americano Greg Fischer chegou ao Brasil com a família em 2013. Naquele ano, de intensas manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público e que se desdobrou numa série de atos contra corrupção e outras bandeiras, sua missão era apoiar como voluntário as ações da Missão Paz em São Paulo, auxiliando no suporte a imigrantes e refugiados que chegavam a São Paulo no Eixo Trabalho.

Foram 18 meses atuando no Eixo Trabalho, na admissão de imigrantes por empresas brasileiras. Dois anos se passaram e Greg presenciou novas manifestações, que desta vez, causaram-lhe outro impacto.

– Comecei a ver nas manifestações de março de 2015 algo que se aproximava de uma xenofobia das pessoas contra esses imigrantes, conta ele em conversa com o Clichetes.

Incomodado, ele que já não estava mais trabalhando com a mesma frequência na missão, decidiu criar um projeto inspirado pelo Humans of New York, que posta em redes sociais uma foto e uma pequena história sobre a pessoa retratada, todos de Nova York.

O missionário norte-americano Greg Fischer, autor do projeto rostos da imigraçäo.

Assim nasceu o projeto Rostos da Migração. Greg criou o site para postar retratos e parte do depoimento dos entrevistados contando passagens de suas vidas. A página entrou no ar em abril e já conta com dezenas de relatos de pessoas vindas da Armênia, Síria, China, Bangladesh, Camarões e outros países. Os depoimentos são traduzidos para português, inglês, espanhol e francês para que possam ser lidos por mais pessoas e até por amigos e familiares distantes desses personagens.

– Comecei o Rostos da Imigração para mostrar que essas pessoas não são muito diferentes de nós. Eles têm os mesmos sucessos, fracassos e experiências muito importantes na vida, como todo mundo. Nossa experiência de humanidade é muito similar, a diferença é a cultura e a língua.

A língua, aliás, é uma das poucas coisas que deixam o norte-americano tímido por ele achar que ainda não domina bem o português.

– Não falava nada quando cheguei aqui. No ensino médio estudei espanhol, mas isso há dez anos. Lembrei um pouco quando cheguei e ajudou com algumas coisas. Mas depois de duas semanas em São Paulo os missionários foram para Brasília para ter aulas de português. Foram três meses de aulas na escola da CNBB.

Nosso encontro aconteceu uma semana depois que (mais) um barco com imigrantes naufragou deixando o corpo de uma criança síria de 3 anos em uma praia da Turquia. A foto correu o mundo.

A Síria enfrenta uma das situações mais graves entre os países que veem sua população buscar refúgio em outros lugares. Uma guerra que dura mais de quatro anos. O Brasil virou o principal refúgio dos sírios. No ano passado, o país concedeu refúgio a 2.320 estrangeiros – número recorde -, e os sírios foram mais da metade deles. Em 2015 o balanço não deve ser diferente.

– Acho importante compartilhar o que está acontecendo na Síria. Todo mundo sabe o que há lá, mas não conhecem o nível pessoal dessas histórias, diz Greg.

No entanto, embora essas histórias já sejam carregadas de drama e tragédia, ele conta que faz questão de não dar apenas esse tom  aos depoimentos que compartilha. Quer também mostrar que há histórias positivas e de superação.

– Também quero mostrar que esses imigrantes e refugiados estão integrados à cidade de São Paulo. Eu não quero fazer entrevistas dentro da Missão Paz porque tem-se a percepção de que ali é uma espécie da Africalândia, que todos os refugiados moram lá. Não é verdade. Eles estão morando em diferentes lugares da cidade, estão se adaptando.

A imagem que o missionário quer evitar é a dos salões lotados nos abrigos para imigrantes e refugiados. São Paulo tem apenas 220 vagas para abrigar essas pessoas, dividas entre o Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (Crai) e a Casa do Migrante, na Missão Paz. Mas devido ao intenso fluxo de chegadas, a Missão Paz já chegou a abrigar 250 pessoas.

Em suas conversas, Greg nota que um dos pontos mais difíceis para essas pessoas é trabalho. Não há oferta de trabalho para todos e muitos acabam optando por empregos informais ou arriscam abrir o próprio negócio, mesmo com a burocracia.

– Antes da recessão econômica, muitas pessoas vinham ao Brasil porque era uma terra de oportunidade. Agora, as oportunidades de dois ou cinco anos atrás reduziram. É muito difícil. A Missão Paz continua o Eixo Trabalho, mas as vagas estão diminuindo.

Greg durante entrevista no centro de Säo Paulo para o rosto da imigraçäo.

Embora haja pontos a serem discutidos na estrutura oferecida aos imigrantes e refugiados no Brasil, Greg diz que o que vê hoje aqui não existe no seu país.

– Isso não acontece porque a percepção dos imigrantes no país é ruim. Muitas pessoas falam sobre como os EUA precisam acabar com a imigração. Muitas pessoas moram longe do centro da cidade para não serem pegas e deportadas, uma prática muito comum lá e que aqui não acontece.

Para achar seus entrevistados em São Paulo, Greg anda pelas ruas onde refugiados e imigrantes circulam e espera que alguém queira compartilhar com ele sua história de vida. A conversa pode ser numa escadaria na rua, num café, em qualquer lugar.

– Eu sinto que todo mundo tem uma história para compartilhar com o outro. Quero entrevistar qualquer imigrante ou refugiado que está disponível a fazer isso. Mas às vezes isso não acontece. Eles não querem falar, pois tem algum medo. Minha mulher pensa que em certos casos, dependendo da experiência que cada um teve no passado, isso deve-se ao fato de eu ser homem e branco, pode ser intimidador.

Agora Greg quer melhorar seus conhecimentos sobre fotografia para caprichar mais nos retratos dos personagens. E melhorar o português. “Sempre”. Quer fazer algo grande com o projeto, mas confessa que precisa melhorar a periodicidade das atualizações para que mais pessoas acessem o site e encontrem sempre novas histórias. Fora isso, ele planeja acompanhar a jornada de um boliviano que está deixando o seu país com destino ao Brasil.

– É algo para acontecer mais para frente porque terei que ficar dedicado a isso. Vamos ver.

Vida Missionária

A saída é não forçar uma conversa e mostrar-se aberto e disponível ao outro quando for a hora, uma vivência que Greg adquiriu bem antes de chegar ao Brasil, ao entrar para o grupo de missionários da Maryknoll, organização sem fins lucrativos ligada à Igreja Católica e que atua com missionários na África, Ásia e América.

O grupo é baseado em Nova York, mas tem representações em outras partes do mundo. El Salvador, Bolívia, Camboja, Tanzânia, Brasil, entre outros. O trabalho consiste em atuar com programas sociais. No Brasil hoje são seis missionários e dois padres atuando pela organização.

– Me perguntaram se eu gostava da região do Brasil e não vi problema, diz ele ao contar de como chegou ao país em janeiro de 2013. Fazia pouco mais de um ano que ele e a mulher haviam se tornado missionários da organização.

– E o que o levou a ser um missionário?

– É uma pergunta complexa porque é uma decisão muito pessoal. Antes de minha esposa e eu nos casarmos, tivemos interesse a trabalhar em um país diferente. Descobrimos o nosso interesse compartilhado durante a manifestação contra as ações militares dos EUA na América Central e América do Sul. Antes de nos juntarmos à Maryknoll, testamos nosso interesse durante nosso tempo na faculdade em 2008 e 2009. Eu fui a Talasari, na Índia (ao norte de Mumbai) por três a quatro meses dar aulas para crianças indígenas, e minha esposa foi a uma missão em San Lucas Tolimán, na Guatemala. Nosso interesse não diminuiu. Para mim, uma educação deve ser aplicada para o benefício de outros. Escolhemos ser missionários por causa disso: utilizar nossas experiências e formação para apoiar outros.

Fonte: Clichete

Audiência pública sobre migração tem a participação da DPU no Recife

Audiência pública promovida pela Comissão de Assuntos Internacionais da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), na última quarta-feira (18), teve a participação da unidade da Defensoria Pública da União (DPU) no Recife. Problemas como precariedade no atendimento em órgãos públicos, empecilhos à regularização migratória e dificuldades de integração com a comunidade foram alguns dos relatados por imigrantes e estudiosos durante o encontro.

As autoridades ouviram reivindicações para a implementação de políticas públicas voltadas à inserção social dos estrangeiros em Pernambuco e os participantes apontaram para a necessidade de uma instância governamental que articule o acolhimento e o apoio aos recém-chegados.

O defensor público federal André Carneiro Leão, chefe da DPU no Recife, disse que tem crescido o número de pessoas nessa situação e que a realização dessa audiência pública é mais um passo na concretização de políticas públicas. Leão sugeriu a criação da rede de apoio ao estrangeiro, de uma casa de acolhimento ao migrante, de um centro cultural de comércio e cultura para os migrantes e de um dia estadual de celebração dos migrantes e de sua multiculturalidade.

“Anos atrás, a DPU/Recife realizou audiência pública para debater a situação dos presos estrangeiros e, já nessa época, constatamos a necessidade de criação de uma rede de apoio ao migrante de uma forma geral e de uma casa de acolhimento para evitar que os que aqui cheguem desamparados permaneçam em situação de vulnerabilidade”, ressaltou o defensor.

O presidente da Comissão de Assuntos Internacionais, deputado estadual Joaquim Lira (PDT), destacou a urgência em aperfeiçoar a legislação e de mobilizar as instituições para garantir condições dignas aos imigrantes. “Acolhemos a sugestão da Defensoria Pública e vamos propor o Dia Estadual do Imigrante e do Refugiado, para que a questão ganhe espaço anualmente”, disse.

Participaram do evento, o defensor público federal Pedro de Paula Lopes Almeida; a pesquisadora do Núcleo de Estudos em Relações Internacionais da Faculdade Damas, Maeli Farias; o sociólogo Roberto Cordeiro; e representantes da Secretaria Executiva de Direitos Humanos da Prefeitura do Recife, do Escritório de Assistência à Cidadania Africana em Pernambuco, da Associação Pernambuco-África, da Associação Senegalesa do Nordeste, além do Consulado da China no Recife, da Sociedade Consular de Pernambuco e do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares.

Migração – Os dados oficiais sobre a presença de imigrantes em Pernambuco são imprecisos, mas entidades envolvidas no tema estimam que 7,5 mil pessoas de outros países residam no Estado.  A maioria é formada por senegaleses e chineses, que trabalham, muitas vezes, no comércio informal de Recife. Além de um pequeno número, ainda desconhecido, de refugiados, de cidadãos com visto humanitário, de estudantes em programas de intercâmbio e professores universitários vindos, em grande parte, de países africanos de língua portuguesa.

Fonte: Defensoria Pública da União

O corpo de Fetiere, negado três vezes

Com golpes de facas, pás, pedras, os assassinos de Fetiere Sterlin davam seu recado de ódio: “vai embora para tua terra, criolo”. Mas o haitiano de 33 anos não voltaria para casa. A mesma falta de dinheiro que o trouxe a Navegantes, cidade de 72.000 habitantes no litoral de Santa Catarina, o prendeu para sempre em terras brasileiras. Morto no sábado, dia 17, a família teve que esperar por seis dias para sepultá-lo. E só o fez porque a proprietário do cemitério particular Jardim dos Florais doou um espaço. Os três cemitérios públicos do município recusaram o seu corpo alegando falta de vagas.

Fetiere, a esposa e quatro amigos resolveram passear na noite de sábado. Não chovia, depois de quase duas semanas de temporais no município. Eles conversavam na Rua Adolfo Koeler, quando três garotos passaram de bicicleta e um gritou “macici”. Sem imaginar as conseqüências, ele revidou com um “macici é você”. Antes de partir o garoto ainda respondeu: “Se eu sou macici, tu vai ser morto”. Após alguns minutos, cumpriu sua promessa.

“Macici”, que significa gay, foi a primeira e talvez única palavra que os moradores de Navegantes aprenderam em crioulo, língua falada por quase toda população do Haiti, conta João Edson Fagundes, diretor da Associação de Haitianos da cidade e único brasileiro engajado no projeto que busca oferecer amparo jurídico e social aos imigrantes que, na maioria dos casos, chegam ao Brasil sem nada e são explorados no Sul do país como mão de obra barata.

“Eles entram pelo Acre, através dos coiotes, que sugam o pouco que têm”, diz Fagundes. Segundo a Agência Brasileira de Inteligência, quase 40.000 haitianos cruzaram nos últimos quatro anos a fronteira brasileira sem visto, a rede de coiotes faturou cerca de 187 milhões de reais com a miséria alheia.

Fetiere também entrou ‘clandestinamente’ no país. Trabalhou durante oito meses em Rio Branco, no Acre, viveu um ano em São Paulo e desde 2013 morava em Navegantes, onde conheceu a belenense Vanessa Nery Pantoja, sua companheira desde então. Os dois tinham vidas semelhantes. Batalharam desde cedo, tiveram que abandonar a terra amada e a família por uma oportunidade de emprego e sofreram o preconceito dessa escolha.

“Você pensa que somente os haitianos sofrem? Os trabalhadores do Norte e Nordeste também são excluídos nesta cidade. O ódio deles é pela cor da pele. Tenho uma amiga baiana que já foi xingada, ‘macici’, ‘macici’. Achavam que ela era haitiana. Minha filha de nove anos é negra, por isso te falo tudo isso. Não quero que ela sofra. Talvez a gente precise ir embora. Todos nós”, diz Vanessa.

Da morte brutal até o sepultamento o corpo, Fetiere permaneceu quase 90 horas no IML (Instituto Médico Legal), que aguardava os documentos da embaixada haitiana, e mais um dia inteiro para descongelamento e preparo na funerária.

Na quarta-feira, o delegado Rodrigo Coronha deteve quatro adolescentes. Todos são brancos, de classe média baixa e têm entre 14 e 17 anos, além de um homem de 24 anos, que participou do espancamento. Eles confessaram o crime e responderão por homicídio qualificado por motivo torpe, que inclui xenofobia, racismo e ódio. Três deles foram distribuídos entre centros de atendimento socioeducativo de Blumenau e Joinville, o quarto adolescente aguardava até este sábado abertura de vaga em Rio do Sul. O homem está preso no Complexo de Canhanduba, em Itajaí.

O adolescente de 17 anos justificou a autoria do crime ao alegar que Fetiere paquerou sua namorada enquanto passeavam de bicicleta. As testemunhas, porém, desmentem essa versão. “Primeiro não havia menina. Depois, Fetiere jamais desrespeitaria uma mulher. Ele sequer mexeu comigo quando nos conhecemos. Era um homem sério, trabalhador. Se esforçava para enviar dinheiro para filha de oito anos que mora no Haiti e para comprar nossas passagens”, diz Vanessa.

Fetiere trabalhava como isolador naval e Vanessa como montadora de eletrodomésticos. Os dois economizavam para se mudarem para os EUA em 2016. Parte da família dele vive lá há quase uma década e está em melhores condições financeiras. “É um sonho que desaguou”, concluiu Vanessa.

Mão de obra barata

O economista britânico Paul Collier publicou em uma pesquisa encomendada pela ONU (Organização das Nações Unidas), que um trabalhador haitiano custava menos do que um chinês. Isso em 2009. Desde que o chão tremeu no Haiti – no dia 12 de janeiro de 2010- e deixou 1,5 milhão de desabrigados, os imigrantes que desembarcam no Brasil trabalham pelo preço que for pago.

Santa Catarina é o principal destino dos haitianos desde o ano passado. Eles trabalham nos frigoríficos do Oeste, nas plantações da Serra e nos canteiros de obras na Grande Florianópolis. Trabalhos que ninguém queria e que aumentam consideravelmente a riqueza do Estado, que já é o sexto mais rico do país.

Segundo Fagundes, dos 700 haitianos que vivem em Navegantes menos de 30% tem carteira assinada, assim não recebem direitos trabalhistas, muitos ganham salários menores que os catarinenses e apesar do Haiti ter liderado a única revolta de escravos que deu certo, há 211 anos, alguns vivem em situação análoga à escravidão.

A presidenta Dilma Rousseff publicou três mensagens no Twitter que lamentavam a morte de Fetiere. “Num país como o Brasil, conhecido mundialmente pela solidariedade e fraternidade, crimes de ódio como esse são inaceitáveis”, escreveu.

Maioria branca

A violência contra Fetiere não foi a primeira registrada contra um haitiano em Navegantes. Em janeiro no ano passado, Claude Gustavo recebeu cinco tiros, sobreviveu e foi embora. João Edson Fagundes disse que as agressões contra os imigrantes são corriqueiras. No Brasil, outros dois haitianos foram mortos de agosto a outubro deste ano, segundo Jacson Bien-Aimé, conselheiro da Embaixada do Haiti no Brasil. Os outros crimes foram em Rondonópolis, no Mato Grosso, e em Flores da Cunha, no Rio Grande do Sul.

Mas o racismo em Santa Catarina não se resume às mortes e explorações trabalhistas. Nas eleições de 2014, por exemplo, o Estado foi o único que não elegeu nenhum negro no país. Já o jornal The Sun, segundo de maior circulação no Reino Unido, publicou que Florianópolis é a cidade com mais pessoas bonitas do mundo. Os jornais estaduais estamparam o assunto nas manchetes, com diversas fotos, nenhuma de um negro, até porque apenas 2,9% da população se declarou afrodescendente no Censo.

Já em novembro de 2013, os moradores de Brusque, cidade vizinha a Navegantes, viraram notícia pela carta intitulada “Aviso aos baianos”, que ameaçava eliminar os migrantes que não fossem embora.

Fonte: El País